Exposição anterior:
Isabel Sabino
Obrigada pela sua visita
de 2022-07-02
a 2022-08-04
Obrigada pela sua visita
No início, passa-se um tempo real. Uma mulher entra num jardim que transborda de cor. Não tem
memória, apenas uma intensa curiosidade. Aproxima-se do homem. Ele não mostra curiosidade. Está
parado em frente a uma árvore. Dentro da árvore há uma palavra que se transforma num nome. Ele
recebe o nome do todas as coisas vivas. Em sintonia com o presente, não tem ambições nem sonhos.
A mulher alcança-o, fascinada pelo mistério contido das sensações que dela extravasam.
Fechei o caderno e sentei-me no café a pensar no tempo real. Será um tempo ininterrupto?1
Há uma altura em que as imagens me visitam mais nítidas do que hologramas, antes de se dissiparem.
Posso tentar trocar-lhes as voltas, fingir ignorá-las como factos mentais de realidade primordial
lúcida ou, pelo contrário, enganosa. Figuras sem convite, acabam por impor uma fisicalidade qualquer,
presença. E não há abstração ou experimentação que lhes valha para desviar nexos que procuram
forma. Mesmo que troque a sombra pela luz, a esquerda pela direita, mulheres por homens e pássaros
ou vice-versa, até nos gestos aparecem histórias. O jeito é deixar que se materializem no presente
onde devoram o tempo todo, antes e depois.
Então, quando os pés se desprendem da terra, o jogo não é o deste mundo, embora este ali paire em
levitação numa amálgama informe de coisas à escolha. Nomear é, nessa altura, uma hipótese, para
descobrir rumos em tal coreografia aérea.
Contudo, Tereu e Evélpides ou Melanie, Pedro o Louco ou Struwwelpeter, nomes como esses
comprovam, afinal, que o problema das palavras, tantas e tão ricas, é serem insuficientes para
compreender e aceitar a insensatez e loucura, paixão, mera desrazão ou ainda a sabedoria funda dos
humanos animais e, sobretudo, o lastro que deixam. No seu parco verbo e frágil e patética simplicidade,
Gelsomina habita uma dimensão paralela do tempo e, na impossibilidade de integrar a violência
e as consequências inaceitáveis da duração fugaz e do devir, converte-a no presente, no seu presente,
que habita e por que morre. Pedro e Marianne, ou outros como eles, desfazem o passado na sua
incessante passagem por coisas, identidades e caprichos, conflitos, fugas, momentos de tréguas,
lugares distintos. É como uma janela de comboio e relógios sem ponteiros, diz ainda Patty Smith.
Caminhos curtos ou longos, tantas e turvas são as estradas, enroladas em curvas e rotundas, sem
mapas de papel ou satélite que as mostrem antecipadamente. Por isso e sem narrativas coerentes a
fazer jus à sua necessidade, quando subitamente as imagens invadem o meu campo de visão dou por
mim a contornar um anterior momento sobre a tela, poética corpórea da matéria que acaba por, como
disse Dali de Rose Hobart, roubar-me os sonhos se descuidada. Assim, é deixar-me ir. E nessa
vertigem de aparições e ecos musicais, interessam menos as referências da iconografia de tal casa
assombrada. Sem culpa nem inocência, é como se não houvesse amanhã quando se materializam em
tinta aguada, espessa ou gasosa como o génio da lamparina, a cor a fluir e com ela imagens que fazem
fluir mais tinta e cores que fazem acontecer mais, até tudo se suspender e entrar de novo em letargia
quando a realidade desautoriza esse mundo.
O que se vê, contra corrente que seja, é preciso. Sortilégio da sombra, implica outra fidelidade
profunda da pintura, escancarada para além de si como um mata-borrão de fantasmas num tempo
ardiloso: um presente que condensa no corpo físico da tela, no aqui e agora a que o seu espaço
parece condená-la, uma duração que envolve a memória e a adivinhação da imagem evanescente.
Afinal, quando o tempo assim se dilata, haverá presente absoluto que não integre diferentes extratos
de real, realidades, imaginação, história e futuro?
Por isso ecoo a sensibilidade do poeta que escreve “Obrigado pela sua visita, volte sempre”2 : pelo
privilégio das imagens. E, se ele fala de pessoas que enlouquecem para poderem viver, “porque a vida
é assim mesmo”3, no meu caso não se preocupe com a verdade (ou consequência) do que aparece.
As imagens são suas. Fique à vontade. E, como diz o mesmo poeta4, “Volte sempre. Obrigado.”
1 Patty Smith, M. Train. Quetzal Editores, Lisboa, 2016, p. 97.
2 Bernardo Pinto de Almeida, “Obrigado”. Em Ciência das Sombras, Relógio d’Agua, Lisboa, 2018, p. 128-129.
3 Idem.
4 Ibidem.