Exposição anterior:
Vanessa Chrystie
Natureza Morta
de 2022-05-20
a 2022-07-01
Sopro de vida
Tendo a arte história, importa observá-la para além da narrativa, bem interiorizada, sobre o desenvolvimento e constante alteração dos meios e dos modos de produção artística, registando, pelo contrário, a permanência ou recorrência de questões estruturantes sob o pano de fundo dessas alterações. Os trabalhos da Vanessa Chrystie (VC) reunidos nesta exposição mergulham as raízes da sua atualidade, da sua pertinência e da sua construção formal exatamente aí, na recorrência essencial ao artístico. Encontramo-la em, pelo menos, três dimensões importantes destas obras: a aproximação ao mundo natural mediada pela pintura; a relação com o mundo contemporâneo orientada por uma consciência ecológica e uma expressão ativista; e o trabalho ao nível das estruturas da representação, neste caso especialmente motivado pela inesgotável equação figura-fundo, dando cada vez maior protagonismo a este último.
A noção de que a natureza proporciona uma experiência estética privilegiada, que a arte procura reproduzir, apropriar, ou igualar, é uma das ideias fundadoras da produção artística. Seja por via da representação, do registo, ou da abertura de campos de experiência, a referência ao mundo natural mantém-se como uma constante da história da arte, tendo superado radicalmente os limites da mimesis inicial. Representar e registar espécimes naturais foi também um meio de aprofundar o conhecimento sobre a flora e a fauna, familiar ou exótica, por via de rigorosas metodologias científicas ou ao sabor da curiosidade individual. Com um extremo fixado pela determinação em explorar recursos naturais, especialmente no contexto da dominação colonial, a representação e o registo das espécies naturais parece associar duas dimensões aparentemente contraditórias: maravilhamento e violência. Encontramos ambos na pintura de VC, o que me permitiu começar por destacar a tomada de posição crítica que a artista mantém face ao estado do mundo, ou seja a dimensão ativista que a sua obra comporta. As imagens da fauna que VC compõe com registos impressos da flora, associando-lhes ainda palavras e frases embebidas, e a representação de fragilíssimas bolas de sabão ou balões, conformam um universo de referência mostrado como o avesso da vontade de dominação do mundo natural. A sua violência já não radica na instrumentalização da natureza, mas no dar-a-ver a tragédia que dessa instrumentalização resultou: a ameaça ecológica que paira sobre o planeta e, muito concretamente, a extinção anunciada sobre um número crescente de espécies. As aves, os pequenos predadores e todas as outras espécies silvestres, mais ou menos familiares, mais ou menos simpáticas — rãs, morcegos, ratos, coelhos, corujas, gatos selvagens... — que povoam a pintura de VC produzem um maravilhamento que jamais deixa cair o desespero face à evidência do seu próximo desaparecimento. Essa violenta realidade surge ainda empolada na série de desenhos a tinta vermelha sobre papel impresso com plantas, como evocação da proximidade da guerra, já que as espécies dos pássaros retratadas são aquelas cuja ameaçada de extinção une num laço inesperado os territórios da Península Ibérica e da Ucrânia.
Por fim, importa registar que a consciência ecológica e o ativismo de VC não prescindem do trabalho pictórico ao nível das estruturas da representação. Quero com isto dizer que estas obras reiteram a recorrência do jogo de relações figura-fundo essencial à pintura. Concretamente, VC dá vida à matéria dos seus fundos, trabalhando com técnicas de impressão os próprios suportes de tecido ou papel. As técnicas que usa resgatam saberes ancestrais, em regra guardados por mulheres, sobre a utilização de plantas, da luz, do calor, ou sobre a utilização de agentes de coloração naturais como ferro e bugalhos, em procedimentos de impressão por contacto. Estes processos inscrevem a consciência ecológica, primeiro associada às figuras e às palavras, numa dimensão estrutural e permitem a VC trazer aos seus fundos-natureza um sopro de vida que se propaga em todas as composições.
Joana Cunha Leal