Exposição anterior:
Camilo Alves
Camilo Alves - Artisticamente Incorrecto / Artistically Incorrect
de 2020-07-11
a 2020-09-02
ARTISTICAMENTE INCORRECTO
É possível exercer livremente a nossa liberdade de expressão tendo em conta que haverá sempre, entre quem nos ouve, lê e observa, alguém que se sentirá ofendido, diminuído ou discriminado? E a expressão artística? Em que medida a acção do artista fica limitada neste mundo cada vez mais tolerante?
Sabendo que tantas vezes o papel do artista é o de lançar um olhar diferente - muitas vezes provocatório -, suscitar uma reflexão ou simplesmente confundir o que tomamos por seguro e acessível, deveremos esperar novos constrangimentos à sua actuação? O artista como transgressor social tem os dias contados?
Há anos, o jornalista e escritor americano Christopher Hitchens sintetizava esta tensão emergente: “Aqueles que estão determinados a ficar ofendidos irão descobrir uma provocação em qualquer lado. É impossível ajustarmo-nos o suficiente de modo a agradar aos fanáticos, e fazer esse esforço é degradante.” O actor e argumentista britânico John Cleese abordou, mais recentemente, a mesma preocupação: “(…) o politicamente correcto deixou de ser uma boa ideia até ao ponto onde qualquer crítica sobre um indivíduo ou comunidade passou a ser rotulada de cruel.”
Neste conjunto de colagens procuro aquilo que tem sido a minha máxima artística: suscitar um olhar desconcertante. Um conjunto de gravuras originais do séc. XIX, ilustrando personagens ilustres, históricas e sagradas, são desvirtuadas através da colagem de figuras e imagens icónicas da cultura popular, mais ou menos contemporâneas.
Além das gravuras foram igualmente trabalhadas dezenas fotografias do séc. XIX, ilustrando pessoas reais e comuns que viveram há mais de 150 anos. São homens e mulheres, novos e velhos, casais e crianças que viveram e sonharam, tal como nós. O seu último vestígio é a impressão das suas expressões em albumina, que nos chega na forma de Carte de Visite ou no formato Cabinet.
Todas as expressões das pessoas representadas são inevitavelmente desvirtuadas e corrompidas durante o processo artístico em curso. Em cada colagem, todos eles renascem sob o ícone, que lhes confere nova dimensão e atualiza a essência. A aplicação de stikers, sempre guiada pela mão da ironia e do humor, esvazia e corrompe o carácter formal e hierático dos personagens, transformando-os em novas figuras e proporcionando uma visão inesperada dos seus alter egos. São utilizados stikers do universo popular da banda desenhada, da música e de séries televisivas em voga, tais como Family Guy, Os Simpsons, Guerra dos Tronos, etc. Não esquecendo os filmes e histórias clássicas, como Alice no País das Maravilhas e Guerra das Estrelas, percorrendo os inevitáveis personagens Disney e as sedutoras pin-up. Neste léxico não poderiam faltar os ícones contemporâneos emoji e os logos institucionais da Nike, Coca-Cola, etc.
A aparente “destruição” das gravuras e fotografias originais, quase todas com mais de 100 anos, algumas provavelmente com valor comercial intrínseco, é intencional. A intervenção numa obra de arte per se, desvirtuando-a, é ela mesma um statement. Tal como o eterno retorno está patente na simbologia do Ouroboro, a criação passada contém em si o gérmen da fecundação futura. Arte que inspira arte, mas desta feita literalmente. Tal como a destruição literal de uma urna com mais de dois mil anos por Ai Weiwei; tal como Raushenberg fez quando apagou um desenho original de De Kooning e lhe deu o singelo título de “Erased de Kooning Drawing” e o assinou com o seu nome; ou como, mais recentemente, os irmãos Chapman fizeram, ao retocar um lote de gravuras de Goya, introduzindo personagens grotescos. Também não é novidade a descaracterização das feições de pessoas reais: as colagens de Clay Smith, recorrendo a uma gramática provocadora, associando imagens sexuais explícitas, configuram uma irreversível despersonalização.
Paralelamente à iconografia, cada colagem contém uma frase – em português ou inglês – gravada numa tira plástica colorida, feita nas clássicas máquinas de etiquetas Dymo, tão em voga nos anos 70-80. A legenda faz parte da imagem, complementando-a. Actuando como punch line ou teaser, a etiqueta colorida com a legenda reforça o contexto e dinamiza plástica e conceptualmente a colagem.
Em cada peça procuro confrontar os pólos que sempre me orientaram e motivaram artisticamente: a Figura Humana e a Ironia. Seja por que meio for, interessa-me intervir sobre o carácter e a aparência das personagens, sujeitando-as ao crivo da ironia e do nonsense. A Figura Humana deve, sob o meu cunho, ser sempre desconcertante, tal como a Arte e a Vida, episodicamente, o são.
Gosto de desfazer puzzles.
Camilo Alves, 2019